A criatividade no olho do tornado

A importância do caos dentro do processo criativo.

Valter Nascimento
Blog do Valter
Published in
5 min readNov 2, 2022

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Francis Alÿs, “Tornado”, 2010.

Um belo dia o artista visual Francis Alÿs teve uma ideia maluca: e se ele filmasse o interior de um tornado de ar quente? Não se tratava dos tornados gigantescos muito comuns no sul dos Estados Unidos, mas dos torvelinhos de ar e poeira típicos do deserto do México, país natal de Francis.

A ideia era boa, mas a prática se mostrou absurdamente difícil. Uma intervenção artística dentro de um objeto tão instável e imprevisível rendeu a Francis nada menos que 10 anos de tentativas frustradas. 10 anos.

Num dado momento, Francis percebeu diante de si um enorme conjunto de peças sem sentido: dezenas de horas de filmagens dele correndo em vão através do campo, recortes de revistas, fragmentos de livros e milhares de anotações com ideias e pensamentos sobre como a coisa poderia acontecer. Todo o seu esforço em prever e controlar a situação se mostrou infrutífero e Francis concluiu: “a atuação contínua da câmera anula qualquer sequência possível dos eventos.”

Era como se os tornados só aparecessem quando ele não estivesse filmando e Francis resolveu reconsiderar o projeto.

Trecho do livro “Numa dada situação”, de Francis Alÿs. Foto do autor.

Criando no meio do furacão

O problema para Francis não era simplesmente estar no lugar certo e na hora certa, era encontrar sentido no caos do processo de filmagem. Filmar o interior de um tornado de ar quente duraria pouco, seria um êxtase momentâneo que não justificaria todo aquele trabalho. O que Francis percebeu é que quanto mais se dedicava ao projeto dos tornados, mais ele escrevia sobre, mais coisas surgiam em sua mesa, ele agora tinha nas mãos uma coleção de ideias absurdas que precisavam fazer algum sentido. Ou seja, quanto mais errava, mais Francis Alys criava. Ele podia não estar criando o que havia planejado, mas estava criando algo totalmente novo e inesperado.

O caso de Francis Alys é um exemplo vívido de como a criatividade não respeita ordens. Enquanto Francis tentava prever os tornados todo o seu processo criativo falhava, isso porque o que realmente importava não eram os tornados e sim a sua busca.

O mesmo ocorre com a boa parte dos processos criativos, principalmente com a escrita. Escrever é como perseguir torvelinhos de vento para vê-los desaparecendo diante dos olhos. Ainda segundo Francis:

“[da] distribuição aleatória dos quatro movimentos da ação — esperar os tornados, persegui-los, alcançá-los ou perdê-los — surgiu então uma espécie de linha temporal…”.

Esperar, perseguir, alcançar ou perder. Essa é a sequencia fundamental de qualquer processo criativo e a diferença entre bons criadores daqueles nem tão bons assim é não considerar a perda um problema.

Não atingir o objetivo criativo por completo não significa não atingir objetivo nenhum. Sempre se encontra alguma coisa pelo caminho, o problema é que algumas vezes desejamos tanto o clímax de um tornado que nos esquecemos de todo o resto.

E aqui um spoiler: Francis Alÿs conseguiu filmar o interior de um tornado no deserto em 2010. O vídeo tem apenas 42 segundos, mas como podemos deduzir, esse não foi o feito mais importante de todo o seu processo.

Trecho do livro “Numa dada situação”, de Francis Alÿs. Foto do autor.

Espirais criativas não lineares

No livro que conta a jornada de Francis Alÿs, há uma citação muito eloquente:

“A famosa mancha vermelha [do planeta Júpiter] é um sistema em auto-organização, criado e regulado pelas mesmas espirais não lineares que criam o distúrbio imprevisível em torno dele. É o caos estável.” James Gleick, Caos: a criação de uma nova ciência, 1987.”

O que Alÿs quer dizer com essa citação é que o próprio caos criativo possui uma regra, a própria falta de objetivo pode se tornar um objetivo concreto. A desordem criativa não é um problema, desde que o criador entenda esse viés.

Muitos autores, artistas e designers comentem o erro imperdoável de desconsiderar o poder do caos em seus processos. A necessidade permanente de uma criatividade linear e espontânea, que ocorre como num passe de mágica, afasta a chance de surpresa. Sem o caos, sem a confusão criativa, sem o desnorteio, o que surgirá para o artista será sempre mais do mesmo.

O branco da tela (seja do computador, do papel ou de qualquer meio onde se crie algo) exibe ao artista o terror das possibilidades infinitas. O medo do espaço vazio é o principal obstáculo para quem deseja ter o caos como seu aliado. O artista que abraça sua insegurança terá mais chances de encontrar coisas realmente sublimes.

É muito comum encontrar listas de como ser mais criativo, de como escrever mais, como criar mais, sempre seguindo um sistema de regras que não leva em conta o fator caótico da coisa. Nada novo nasce da ordem. Somente o caos pode produzir algo original. Isso não quer dizer que todo artista e criador deva abandonar a lógica. O que se apresenta aqui é a chance de olhar para o processo criativo de modo desapegado, desinibido e descompromissado com a certeza. É fazer o imprevisível parte do horizonte criativo. É correr atrás de um tornado sem perder de vista que o campo no qual o tornado se forma é tão importante quanto o deslumbramento final do vento quente.

Os 10 anos de investigações de Francis Alÿs renderam dezenas de obras, hoje expostas nos principais centros de arte moderna do mundo, além de um livro aclamado pela crítica. Você pode conferir a filmagem final de “Tornado, 2010”, com 42 segundos de duração, aqui.

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