A neutralidade sublime

Susan Sontag e a não obrigação do sentido na arte

Valter Nascimento
Published in
5 min readMay 31, 2023

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  1. Esses dias o Joca Terron publicou o seguinte tweet:
  2. “(Kurt) Vonnegut também disse que nenhum esquema de histórias modernas dá satisfação ao leitor a menos que algum enredo antigo — alguém se vinga, alguém mente, alguém mata, rouba, trai, trepa — seja introduzido. Na ficção brasileira atual só restou um enredo: a vingança de classe.”
  3. Gosto muito do trabalho do Joca e talvez (talvez) compartilhemos do mesmo incômodo. Há na literatura brasileira atual uma verdadeira obsessão pela reparação histórica.
  4. O problema é que existe uma barreira que blinda esse tema de quase qualquer crítica.
  5. É como se ao criticar um livro como Torto Arado estivéssemos apontando o dedo contra a questão agrária no Brasil. O mesmo se dá com livros centrados em temas como raça, feminismo, cultura LGBTQIA+, cultura dos povos originários e outros. A causa algumas vezes se sobrepõe à obra.
  6. Não é possível projetar sobre essas obras uma análise crítica mais dura sem correr o risco de soar machista, homofóbico, misógino ou sem ofender potencialmente a alguma minoria ou grupo oprimido socialmente porque estamos falando de uma arte presa a um sentido ético/moral.
  7. Quando a arte se prende a um sentido, se criticamos a forma acabamos criticando o conteúdo.
  8. Em Tár (2022), de Todd Field, há sequência na qual acompanhamos uma aula de regência comandada pela personagem principal vivida por Cate Blanchett. Um de seus alunos se recusa a tocar Bach. Segundo ele, sua condição de homem gay e negro o impede de apresentar uma obra criada por um homem branco e de pensamento conservador.
  9. Aqui há um desvio: a forma parece boa, o conteúdo também, mas o juízo moral recai sobre o autor. Esse juízo desconsidera certas obras em favor do certo ou do errado aplicado sobre a conduta do autor.
  10. Tár é um filme sobre uma pessoa horrível cometendo atos deploráveis, mas ainda assim comprometida com sua arte. Não é uma justificativa, mas uma representação de que a arte é feita certas vezes dentro de um espaço amoral e antiético.
  11. Uma pessoa horrível pode ser um artista formidável. A arte não serve para amenizar isso e é justamente essa contradição que faz com que certas obras sejam tão atordoantes.
  12. No caso da literatura brasileira de hoje há uma dupla cobrança:
  13. O autor precisa defender uma causa ou sentido.
  14. O autor precisa ser ele mesmo parte da causa defendida ou pelo menos se colocar num “lugar seguro de fala”.
  15. Me ocorreu um caso curioso. No ano passado, enquanto o projeto do meu livro ainda estava em andamento, enviei a uma colega alguns textos para análise. Algumas semanas depois recebi suas impressões e uma me chamou a atenção: a recomendação de que um conto não soava bem pois eu, enquanto homem branco, não tinha lugar da fala para representar uma personagem negra.
  16. A personagem fora inspirada em minha mãe e o conto era parte da minha experiência como filho branco de uma mulher negra.
  17. O conto não tentava reparar nada, justificar, orientar, definir ou apaziguar nada. Era apenas um pedaço obscuro da minha memória.
  18. A colega fez a crítica com a melhor das intensões, mas o mais estranho para ela foi perceber que eu não queria dizer nada além do que já havia sido dito. Eu não queria e não quero usar a minha escrita para reparar qualquer dano sofrido a ninguém porque não é para isso que eu escrevo. Eu não escrevo pensando em consertar nada, nem no mundo, nem em mim. Há quem escreva para isso e há quem não escreva e as duas formas são boas. Nem sempre a literatura precisa fazer parte de um projeto coletivo de reparação.
  19. Em seu ensaio “Sobre o estilo”, Susan Sontag discorre sobre o problema da arte comprometida unicamente com as regras do sentido (moral, social, histórico). Segundo ela:
  20. “Uma obra de arte, na medida em que é obra de arte, não pode — quaisquer que sejam as intenções pessoais do artista — defender coisa alguma. Os maiores artistas atingem uma neutralidade sublime.”
  21. A ideia de uma neutralidade sublime apavora o autor brasileiro moderno. Não falo de uma neutralidade do tipo “nem de direita, nem de esquerda”, mas da neutralidade de não esperar que a arte sempre diga algo claro. A neutralidade de deixar ao leitor parte do trabalho da obra, de não colorir todas as lacunas do texto com alguma “reflexão”, de não pensar que o texto seja uma coleção de frases perfeitas para as redes sociais.
  22. Certas obras tornam-se revolucionárias justamente por conta dessa zona cinza, dessa insegurança lógica nascida num terreno nebuloso entre o bem e o mal onde não há uma moral piscando em letras garrafais a todo momento.
  23. De algum modo se tornou transgressor escrever sobre sentimentos e não sobre objetivos. De algum modo a literatura ancorada apenas em uma palavra depois da outra nos parece incômoda e ousada. De algum modo mudar o mundo através da literatura se tornou uma coisa cansativa. Pelo menos pra mim.
  24. Sim, a literatura pode ser um jeito de reparar injustiças históricas.
  25. Sim, a literatura pode abraçar causas e sentidos importantes.
  26. Mas a arte, como diz Susan Sontag, não precisa defender nada para ser arte. E a literatura pode ser engajada socialmente e ainda assim medíocre. O problema é não poder separar isso.
  27. E mais: o problema é não criarmos uma literatura sem motivo, sem tema, sem outro propósito senão ser literatura.
  28. Susan atacou o problema em outro ensaio colossal. Em “Contra a interpretação”, seu trabalho mais conhecido, ela defende o direito da arte ser apenas o que se apresenta. Um quadro é um quadro, um filme é um filme, um romance é um romance. Não se trata de uma redução, mas de criar um modo de ver a arte sem que haja a obrigação de um sentido social/histórico.
  29. Por medo da frivolidade muitos autores ocultam em suas obras novos sentidos, como um tesouro que só será descoberto através do exercício interpretativo.
  30. Capitu e Diadorim são os exemplos mais famosos da literatura brasileira quando se trata de ambiguidade. São personagens dúbios não por causa de um sentido oculto, mas porque representam a ambiguidade em si mesma. O ambíguo é desestabilizador, tal qual a vida, tal qual a arte
  31. Um livro que hoje não defenda uma causa ou um sentido claro parece frívolo. O estilo pouco importa. A poética, o surreal, o mágico, o inesperado, o infamiliar — tudo isso é posto de lado em nome de uma mensagem óbvia que faça o leitor “refletir”.
  32. É preciso dizer: os temas importantes são… importantes, mas a arte não serve a um só senhor. As reparações históricas não virão apenas através da literatura. O valor da criação artística não é um valor moral.
  33. A arte não está aqui para resolver nada.

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