Aura e imagem: Walter Benjamin e o avanço da inteligência artificial sobre o mundo das artes

Valter Nascimento
Blog do Valter
Published in
7 min readDec 11, 2022

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Imagens de Walter Benjamin criadas no Midjourney por mim a partir do comando: fotos do filósofo alemão Walter Benjamin numa praia do Rio em estilo Sebastião Salgado

“Vocês não se sentem culpados depois que a arte fica pronta?” Essa pergunta foi feita por um usuário na página sobre a inteligência artificial Midjourney no Reddit.

A questão é legítima: a arte criada por uma AI pode ser autoral? Existe pertencimento naquilo que é feito artisticamente por mãos não humanas?

Curiosamente esse mesmo tipo de pergunta já foi feita quando a fotografia surgiu no final do século XIX. Hoje ninguém questiona mais se a fotografia é ou não arte. Como bem sabemos, apontar uma câmera para um objeto é bem mais que um gesto mecânico. O fotógrafo depende da máquina, mas é sua capacidade imaginativa que dá ao ato o status de arte. Dentre outras tantas coisas a arte é também um exercício sentimental de imaginação. Mas o que acontece quando uma arte é criada sem sentimento ou imaginação?

Escrevendo imagens

O Midjourney é um marco no universo das inteligências artificiais. Até então nenhuma AI apresentava um nível tão alto de qualidade, nem a possibilidade de combinações tão inventivas. O que o Midjourney oferece não é apenas um pastiche de estilos, mas imagens com um tipo de refinamento jamais visto. É evidente que o próprio Midjourney já sofre com a voracidade do mercado e outras inteligências como o DALL-E e o NightCafe despontam com funcionalidades igualmente arrojadas, mas até o momento não há nada parecido com ele.

Esse tipo de tecnologia é conhecido como AI generativa e opera por meio de um processo chamado de “difusão” onde a AI é exposta a grandes conjuntos de dados num treinamento onde ela “aprende” a selecionar os principais traços dentro de um estilo ou tema.

Mas aqui cabe uma observação: no caso do Midjourney e similares, as imagens são criadas através de comandos escritos (prompts). Não basta pedir um tipo de imagem, você deve fornecer o tipo certo de comando para obter a imagem que deseja.

Imagem criada por um usuário a partir do comando: “Joana d’Arc em 2099 na guerra dos saqueadores, armadura e espada futuristas reais completas, cena de ação, guerreiro. rosto e corpo lindos, elegante, estômago tenso, fundo violento”.

Essa é uma forma de criação completamente nova. Arrisco dizer que estamos vivenciando um ponto de transformação inédito na história da arte e do design. Em breve o trabalho artístico digital será muito mais um exercício escrito do que um esforço visual. Se a coisa continuar como anda, novos profissionais especializados em escrita de comandos serão necessários para manter o mercado da arte feita por AI. É uma troca de foco, a capacidade imaginativa migraria do traço para a palavra. É também uma ironia inesperada perceber que possivelmente a escrita se torne, de algum modo, tão valiosa quanto a imagem.

Ser o autor de um comando como “Imagens sobre o infame “Acidente da praga azul”, ocorrido nos anos 70 na antiga USSR, combinando elementos de Lovecraft e estética de fotografia governamental antiga” equivale a ser autor das imagens que esse comando produz? No contexto da AI a resposta é sim.

Se o fotógrafo precisa orientar a câmera para o ângulo ideal, o autor de prompts faz o mesmo, só que com outra ferramenta. A relação homem/máquina é a mesma, com a diferença que a AI usa mecanismos muito mais complexos e que em certos casos invade a propriedade autoral. Um criador de prompts que se sinta culpado é o mesmo que um fotógrafo que sinta trapaceando ao editar massivamente suas imagens no Photoshop. A “culpa” definitivamente não deveria ser do usuário, mas dos criadores da AI.

The Blue Plague Incident, gerado pelo usuário kawaiilovecraft do Reddit. A série, incrivelmente perturbadora, pode ser acessada aqui.

Aqui os limites do que chamamos de autoria começam a ficar obscuros. Quando uma AI cria um personagem de quadrinhos em estilo Osamu Tezuka ou Jack Kirby, ela não delimita os traços visando uma “homenagem”. É possível perceber certos elementos estéticos que compõem uma chave linguística. Mesmo quando misturamos isso (Osamu Tezuka + Turma da Mônica, por exemplo), as chaves simbólicas dos dois estilos continuam presentes, sem espaço para o improviso. A questão não é mais se a AI deveria ou não ter acesso a obras de artistas, nem quais são os limites dessa cópia/inspiração/recriação, mas se um estilo pode ser considerado como uma peça autoral. Se eu criar uma HQ em estilo Stan Lee sobre Nosferatu, o que valerá? a propriedade de diretos da Marvel ou a obra de domínio público na qual Nosferatu se enquadra? Só saberemos isso quando a Disney ou outra grande empresa de mídia acionar os alarmes.

A inacreditável série de imagens criadas pelo usuário jarts do Reddit combinando dois filmes: Mad Max e Priscila: a rainha do deserto. Mais aqui.

Dados vendidos como arte

A arte criada por AIs é um produto do capitalismo de vigilância ou do chamado colonialismo de dados. O Facebook usou, e possivelmente ainda usa, fotos de seus usuários para alimentar programas de AI usados por governos para identificar cidadãos. Instagram, Google, Twitter e TikTok atuam do mesmo modo. O que estamos vendo é só mais uma forma de coleta, processamento e venda de dados já prevista e analisada por nomes como Shoshana Zuboff, David Graeber e o brasileiro Eugênio Bucci. A diferença agora é que o subproduto dessa transação é visível e promete substituir o trabalho de artistas e ilustradores.

A AI se apresenta como um atalho criado a partir do trabalho de milhares ou talvez milhões de artistas. Embora possamos compreender que a arte sempre será feita sobre os ombros de gigantes, projetos como Midjourney, Dall-E e afins são formas arrojadas de expropriação. O usuário que tem seu dado coletado, gerido, remixado e convertido num produto para outra pessoa não recebe por isso nenhum pagamento. Já vivemos isso nas redes sociais, agora as caravelas colonizadoras do capitalismo tardio estão aportando em outras paragens.

Walter Benjamin criado por mim no Midjourney a partir do comando: filósofo alemão Walter Benjamin em cores modernas, como se ainda fosse vivo.

Walter Benjamin como se ainda fosse vivo

Prevejo que o texto A obra de arte na era da reprodutibilidade técnica será dissecado como nunca pelos estudiosos que tentam entender o dilema ético da arte feita por AI.

Nesse texto da década de 30, Benjamin cita o galope criativo causado pelo surgimento da fotografia. Acreditou-se que os pintores sumiriam, quando na verdade a fotografia abriu muitos outros caminhos para a pintura, principalmente para a arte abstrata. A fotografia foi uma resposta a necessidade crescente de mais imagens e representações do mundo que os pintores jamais conseguiriam suprir. Mas para que a fotografia se tornasse arte ela precisou se fundamentar na tradição e unir a capacidade de produção da máquina com a imaginação humana. Com a arte feita por AI a coisa não é diferente.

Segundo Benjamim:

“Mesmo na reprodução mais perfeita falta uma coisa: o aqui e agora da obra de arte — a sua existência única no lugar em que se encontra.”

A arte para Walter Benjamim está ligada ao contexto histórico. Em cada época a arte altera o modo como a humanidade se percebe. Essa “aura” que a arte possui em si é um sentido de algo feito aqui e agora, que diz quem somos no tempo presente e que nos dirá quem fomos no passado. Um testemunho que nos oferece um modo único de ver o mundo. Se a arte feita por AI puder capturar isso, então ela certamente veio pra ficar.

A arte não é só beleza, ela é também esforço. Uma obra feita a partir de qualquer meio (físico ou digital) é a representação de uma presença — a presença do artista. Quando a ideia de esforço sai de cena o produto artístico final se torna vazio. Belo, mas vazio. A obra criada por AI poderá ser útil, curiosa, dinâmica, mas a arte não conta uma história apenas no que se mostra. A maior parte do que chamamos de arte nos oferece uma narrativa construtiva oculta muito maior que a própria obra.

Não penso que a arte feita por AI será sempre oca. No caso da série The infamous Blue Plague Incident, o resultado assombrosamente original poderá ganhar um texto complementar. Se usadas num livro ou HQ, essas imagens, até então soltas e sem um fio narrativo autoral claro, podem representar um esforço imaginativo especial. Ou seja, a arte feita por AI sempre dependerá de complementos humanos para quebrar a barreira da estranheza ou da pura curiosidade. Ou poderá servir, como muitos autores e criadores já fazem, como inspiração para universos narrativos únicos. Poetas e experimentadores digitais terão em mãos uma caixa de Pandora tão incrível quanto perigosa.

Há uma máxima que sempre gosto de repetir diante de mudanças radicais causadas pela tecnologia: o isqueiro não matou o fósforo. O cinema não matou o teatro, nem a TV matou o rádio (aliás, como é curioso o renascimento dos tradicionais programas de rádio agora em formato de podcasts). Um meio criativo ou midiático quase nunca mata o seu antecessor, mas o incorpora. Creio que a arte digital num futuro bem próximo será um misto de imagens artificiais com complementos autorais, de textos feitos para ilustrar imagens e imagens feitas a partir de textos.

Não devemos nos esquecer que para que a AI aprenda um estilo é preciso primeiro que um ser humano crie esse estilo, mas algum dano será causado. Nenhum novo padrão criativo se estabelece sem atritos. Podemos ver a AI como impostora ou colaboradora, como fonte de inspiração ou demolidora da imaginação humana. A ética sempre foi parte da arte e agora ela se tornará crucial.

Achei particularmente tocante ver novas imagens de Walter Benjamin, que nos deixou tão poucas fotografias, e imagino o tanto de texto que ele despejaria no mundo tentando decifrar esse enigma. Seria a era digital a assassina definitiva de todas as artes? O olhar artificial de Walter Benjamin numa praia do Rio fotografado por Sebastião Salgado me diz que não.

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