Colagem do autor

Como transformar qualquer coisa em arte

Notas sobre o processo criativo de uma coisa ainda sem nome

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A solidão

Você deverá ficar um bom tempo sozinho.

Quanto tempo? Isso dependerá de muitos fatores. Se você é uma pessoa acostumada com a solidão, se tem pensamentos acelerados ou não, se a contemplação é algo rotineiro para você, se é herdeiro de uma família rica e entediada, se tem um gato, se gosta de ouvir Cocteau Twins, se vive numa cidade muito acima do nível do mar…

Depois disso você precisará observar uma coisa familiar até que ela se torne estranha. Confesso que essa pode ser a parte mais perturbadora. Não estamos acostumados a buscar o lado estranho do que é familiar. Desconsideramos que em tudo o que é familiar existe um elemento de desvio. É esse desvio que interessa.

Essa coisa familiar poderá ser um punhado de frases de um romance ou conto inacabado, uma tela rabiscada com um pouco de tinta, um punhado de recortes de revistas, uma imagem incompleta aberta num programa de edição.

Essa coisa deverá estar lá há algum tempo. Ou seja, você não estará sozinho com algo novo, não ainda. Não se trata da criação da coisa pura, mas da transmutação de uma coisa já existente.

Essa coisa já fazia parte de você antes, mas de algum modo você mudou. A coisa, por sua vez, continua a mesma. Estática, presa num frame, suspensa num tempo que não é mais o seu.

Essa coisa só existe porque você não é mais o mesmo.

O tempo

Ao longo do fazer artístico temos que lidar com um descompasso inexorável. A coisa não acompanha o seu criador. Há um delay.

Mesmo que você avance no trabalho, mesmo que dedique de corpo e alma, jamais conseguirá imprimir nesta coisa o tempo presente. Ela sempre será um pedaço pulsante de passado bem diante dos seus olhos. Um pedaço vivo, mas de alguma maneira também morto. É importante compreender essa contradição. A criação não congela nada. Ela será mais como uma brasa de carvão que você tenta manter acesa. A luz vem, mas se esvai na mesma medida.

Você perceberá que o tempo se comporta de maneira diferente quando você mexe com a coisa. Primeiro tudo parece urgente demais. “Estou perdendo tempo”, você pensa. Você deveria estar se dedicando a uma coisa útil, menos volátil, de resultado imediato. Algo compartilhável, clicável, vendável, aprazível. Você terá que aprender a deixar essa ideia de lado. A coisa familiar não irá se transformar em um sonho, um produto ou um espetáculo. Ela será outra coisa.

Depois disso o tempo passa a não existir mais. Você não percebe mais as horas passando enquanto mexe com a coisa. Ela aniquila o tempo, você se perde nela.

E quando a solidão e o tempo não forem mais um problema você estará apto a dar o próximo passo.

A resistência positiva da coisa

Depois de ficar um bom tempo sozinho olhando para a coisa ela tentará te seduzir. Irá te persuadir a não ser modificada. A coisa quer ser coisa como tal, não quer se transfigurar.

Ela te dirá que você deverá respeitar as tradições, o bom gosto, os bons costumes. Ela fará para você grandes olhos de cão abandonado implorando a todo custo para que você não a desfigure. Um corte nesta coisa será como um corte em sua própria carne. Uma correção nesta coisa doerá como um risco em seu ego.

Você perceberá que o familiar que existe na coisa produz um tipo de prazer morno e constante, como um dia quente numa praia deserta, como um copo de chá num dia frio. É um prazer que se instala como uma presença confortável, que pede com todas as forças para não ser violado.

Com um pouco de observação você verá que esse conforto não oferece nada de novo. Não há nenhuma possibilidade dentro do prazer que a coisa oferece.

A coisa te afaga, te alimenta e depois disso some. Para que a coisa se transforme, você precisará primeiro desenhar seus limites e então destruí-los.

Isso quer dizer que a coisa ainda é familiar demais, ela ainda é demasiado sua, ainda está atrelada ao seu ego como um parasita. A coisa quer o que você quer, quer refletir os seus valores, o seu desejo. A coisa quer ser elogiada, ser bonita, quer ganhar tapinhas nas costas, quer impressionar os amigos, a crítica, receber likes, engajar shares. A coisa quer ser algo bom, quer mudar o mundo. Mas esta não é a função da coisa e o seu papel é decepcioná-la até que ela desista. Ela vai desistir.

A resistência negativa da coisa

Por fim a coisa se irrita. Passa a se comportar como um monstrinho mimado. Ela parecerá falha, canhestra, mal feita, impotente. Um esforço sem sentido que jamais será devidamente apreciado. Essa é a fase final da coisa. Seja persistente.

Uma amiga artista plástica me disse algo que jamais esqueci: para fazer arte você precisa fazer algo até que isso perca a utilidade.

A arte não é útil. Mas isso não quer dizer que ela não seja necessária e desejada. Ela é um objeto inútil que em redescobre em sua não-utilidade um novo uso, um novo sentido. O sentido da coisa.

Depois de um certo tempo sozinho com a coisa ela começará a esmaecer. Perderá a graça, o encanto, o calor. Parecerá pequena, diminuta, fraca. Você irá querer se desfazer dela como alguém que abandona um filho indesejado. “Não está bom o bastante”, você pensará, mas esse pensamento não é seu, é da coisa. Ela não quer estar pronta, ela nunca quer. Ela quer continuar a ser coisa. Todos os elementos que compõem o nosso mundo buscam essa estabilidade irritante e permanente. As coisas só se transformam diante de uma boa dose de pressão. E entre a mudança e a aniquilação a coisa preferirá ser aniquilada. Fique atento: a coisa prefere ser apagada do que revelada.

A face final da coisa

Por fim, a coisa não terá qualidades nem defeitos, apetrechos ou atributos.

Ela não será bela ou feia, simples ou complexa, clara ou obscura, óbvia ou sutil.

Ela não será sua, minha nem de nenhum grupo específico. Mesmo assim será ampla, aberta e universal. Mesmo sem sentido claro ela fará sentido. Mesmo sem ser algo definido ela será algo por definição. Ela de define enquanto coisa indefinida.

Ela não irá capturar o tempo, não justificará o mundo nem se comunicará a todos do mesmo modo, mas ainda assim ela terá algo a dizer, algo bem diferente do que você imaginava. Isso porque a coisa, agora sozinha e isolada dos afagos do ego, desprovida de sua carga positiva ou negativa, encontra seu ponto de neutralidade excelente. Ela é e não é. Ela diz, mas nunca diz tudo. Ela mostra, mas nunca revela. Ela atrai a atenção (do espectador, do leitor, do ouvinte) sem alardes. Ela é algo presente no mundo, algo com forma e vida, mas ainda assim é uma coisa para além da forma e para além da vida.

Então você poderá dar a coisa o nome que achar mais conveniente. Ela agora é um romance, um conto, um poema, um quadro, uma imagem, uma música, uma forma física ou digital. Não importa muito o meio que você dará a essa coisa. A coisa agora está livre de você e você está livre dela. E uma vez separados vocês permanecem conectados por um fio atemporal. Você e a coisa coexistem no tempo suspenso.

Agora é hora de repetir o processo e procurar outra coisa para libertar.

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