O que escrevo quando não digo

Lacan, literatura e a tarefa impossível do escritor

Valter Nascimento
Published in
6 min readOct 30, 2023

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Jacques Lacan disse: “Não existe relação sexual”. Desde então essa afirmação vem sendo usada para revirar a teoria psicanalítica pelo avesso. Se não existe relação sexual, o que existe?

Explicar Lacan não é simples, mas é um exercício estimulante. Há em sua teoria uma forte capacidade de converter ideias e símbolos e isso diz muito sobre o processo de produção literária. Vejamos.

Quando diz que não existe relação sexual, Lacan se refere ao ato sexual absoluto, ao gozo total que orienta o sexo. O sexo é um gesto em busca de um gozo sem limites, uma busca por saciedade e pela realização de uma fantasia inatingível. Assim, o sexo é um exercício de fracasso, pois o gozo total não é possível, seja através do sexo ou de qualquer outra coisa.

Não é nova a comparação da literatura com o prazer sexual. Tampouco é inédita a mistura de psicanálise e literatura, especialmente Lacan e Freud. Mas é bom respeitar as diferenças e entender os limites da linguagem psicanalítica. Com isso em vista, enquanto atividade de gozo e fantasia, escrever também é uma não-ação, uma ação impossível. Parafraseando Lacan, não existe relação textual.

Quando Lacan aponta a relação sexual como um ato de fracasso, o diz através de dois parâmetros. Primeiro: não podemos nos relacionar com nada nem ninguém de modo absoluto. Não existe gozo absoluto porque o desejo que orienta o gozo não tem um ponto fixo. A realização de uma fantasia sexual não apenas libera energia, mas também acumula uma energia nova. A fantasia não é saciável, mas o fato de jamais se realizar não torna essa fantasia improvável. Na usina nuclear do desejo, quanto mais se produz, mais se tem. A realização do desejo não o encerra, pelo contrário, abre a porta para a repetição por uma nova busca pelo mesmo desejo incompleto. Sísifo e sua pedra é a imagem mais óbvia que me aparece agora, mas Sísifo, de algum modo, chega a algum destino (o topo da montanha). O gozo não. Ele é tanto a pedra quanto o ato de empurrar a pedra e também o próprio destino da pedra.

O escritor experimenta uma condição semelhante. Ele poderá criar o texto que melhor representa suas ideias, o texto capaz de orientar o seu desejo criativo rumo a uma obra ideal, mas haverá sempre, acima desta obra, outra. Poderá ser outra obra sua (o texto que tentei escrever e não pude) ou de outro autor (o texto que alguém já escreveu melhor do que eu). Sem um ponto absoluto de referência, o autor tem que se contentar com o mal-estar de sua criação, tem que experimentar um gozo parcial, tem que dialogar com o fracasso e ainda assim repetir o processo. O autor aqui não difere muito do histérico.

A segunda questão de Lacan é que se não podemos nos relacionar de modo absoluto com o desejo, tampouco podemos nos relacionar de modo relativo porque não existe um gozo “limitado”. Quanto buscamos o gozo, buscamos sempre o gozo total. O gozo “parcial” não é gozo, é prazer.

Desse modo, não existe um gozo absoluto (total, sem limites), nem tampouco um gozo relativo (parcial, orientado para ser de um certo tamanho) porque não é assim que o gozo funciona. Ele não lida com “limites”, ele não existe na linguagem, ele não se apresenta como algo “tangível”, embora sua presença seja sim real. Ele é algo que está aqui em nossa vontade criativa e que ao mesmo tempo não nos é permitido conhecer. E se algo não pode ser nem relativo, nem absoluto, esse algo não é.

Mas como uma coisa que não é nem absoluta nem relativa pode existir? Ela existe a partir de que tipo de condição? Aí é que entra a questão do gozo e do prazer.

Lacan define gozo e prazer como duas coisas diferentes. O gozo aqui não é o mesmo do orgasmo. É a energia inconsciente que nasce do limite. O gozo não pode ser organizado num sistema, nem pode ser definido por uma regra. O gozo é impossível, é um querer presente, eterno e incompleto. Já o prazer pode ser estruturado, organizado, pode ser pensado. Posso organizar minha escrita a partir do prazer de escrever, esperando com isso que o leitor sinta também algum tipo de prazer (mesmo que esse prazer seja, no final das contas, algo desagradável). Mas não posso estruturar a energia que provém do gozo literário. Gozar escrevendo é sempre gozar a partir de uma falta, de uma impossibilidade. O melhor exemplo seja talvez a poesia, que sempre diz algo a partir de uma lacuna. A poesia chega ao espaço do gozo enquanto forma sem forma, enquanto energia bruta que nem sempre respeita a lógica, o bom gosto e o bom senso. O sentido da poesia é extravasar algo, é chegar ao espaço onde a linguagem não é mais necessária. É dizer o que não pode ser dito.

Orides Fontela em seu poema “FALA”, nos dá um pedaço dessa coisa:

Tudo
será difícil de dizer:
a palavra real
nunca é suave.

Dizer é difícil porque a palavra real não é mais a coisa dita. Dizer é dar lugar a uma outra coisa porque o que dizemos já não é mais o que queremos dizer, é linguagem.

J. D. Nasio em 5 lições sobre a teoria de Jacques Lacan cita um exemplo iluminador. A criança que brinca num balanço está exercendo um ato de prazer. Quando o impulso de se balançar aumenta, ela experimenta uma excitação. “E se eu for mais rápido e mais alto?” A criança sabe do limite, sabe que não poderá voar ou atingir o céu em sua brincadeira, mas ainda assim a ideia de ir ao limite é viável. Pode ser prazerosa ou não, pode ser estimulante ou aterrorizante (ou os dois), mas é uma tentativa de gozar de uma condição nova. Esse gesto de ir ao limite é o gozo. O que existe no limite do balançar é algo que não pode ser vivido, apenas tentado.

Muitas vezes nos perguntamos: por que escrevo? Talvez a pergunta devesse ser: por qual desejo eu escrevo? Ou ainda: por qual impossibilidade eu escrevo?

Escrever a partir de uma impossibilidade é a única forma de compreender a dinâmica da escrita. Não é uma forma de fazer as pazes com o texto, mas um modo de perceber nossas limitações invés de camufla-las.

Nasio também diz: “Quando o gozo domina, as palavras desaparecem…” Gozar, experimentar o limite das coisas, é perder as palavras. E como isso se aplica ao ato de escrever? Como o desaparecimento da palavra pode representar a escrita?

Aí é que está o problema e também sua solução parcial.

O gozo é um limite que se alarga quando nos aproximamos dele. A única forma de quase toca-lo é através da ação. Coisa parecida acontece nas artes em geral. O pintor precisa perde-se em seu trabalho, precisa caminhar cegamente através das cores e das tintas para, ao retornar a si, deparar-se com algo novo. Nada de novo nasce do prazer, mas sim do gozo. O prazer pode ser experimentado depois que o transe do gozo se esvai, mas para que isso ocorra, é necessário que o criador perca sua linguagem. Lacan também dizia que somos habitados pela linguagem. Se o gozo, essa energia primordial e sem forma, é algo anterior à linguagem, ele só pode entrar em cena quando a linguagem cessa. Por isso os atos falhos, os sonhos, as premonições e os sintomas deixam aflorar o que está no inconsciente. Parafraseando José Saramago: somos uma coisa sem nome e a escrita é uma tentativa de nomear essa coisa.

É aqui o ponto a que quero chegar. O dilema do autor é dizer algo sem a linguagem mas sempre a partir dela. É escrever algo que não pode ser escrito. Quando damos ao gozo uma forma linguística, ele se afasta novamente. A questão é: o objetivo do autor não é atingir o limite, mas usar esse momento para encontrar algo novo. Não é ir mais alto e mais rápido no balanço, mas descobrir enquanto brinca o outro sentido da brincadeira.

Lacan também nos diz: “Sou onde não penso”. O escritor existe quando a palavra falta. Justamente quando o texto não diz é quando ele diz mais. Parece um absurdo dizer que o autor precise deixar a palavra de lado para poder escrever, mas é assim que a coisa se apresenta e talvez o grande problema da literatura seja confundir escrever por gozo (em direção do impossível) e escrever por prazer (em direção do que já foi dito).

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