Ruptura, Hannah Arendt e o trabalho sem sentido

Valter Nascimento
Blog do Valter
Published in
8 min readSep 6, 2022

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No livro Bullshit Jobs, David Graeber traçou um desenho peculiar de um tipo de trabalho que não tem outra tradução possível senão trabalho de merda. Na definição de Graeber:

“O inferno é uma coleção de indivíduos que passam a maior parte do tempo trabalhando em uma tarefa que não gostam e na qual não são especialmente bons.”

São funções medíocres realizadas por quem não alimenta nenhuma simpatia pelo que faz.

Podemos pensar no mercado da burocracia e nos concurseiros que dedicam a vida a estudar para cargos para os quais não têm a menor vocação, mas a ascensão dos empregos mediados pelas tecnologias digitais inaugurou uma nova era para os trabalhos de merda.

E numa sociedade que define as pessoas pelo o que elas fazem, fazer um trabalho de merda irá jogar você dentro de um verdadeiro bueiro.

Trabalho e labor

Consideramos trabalho apenas aquilo que pode render lucro, mas essa não é a única forma de entendermos o que é trabalho.

Hannah Arendt tinha uma abordagem original desse dilema quando dividia a ideia de ocupação em dois tipos de funções: labor e trabalho.

Para Arendt, o labor é tudo o que fazemos para nos mantermos vivos. Comer, se banhar, fazer nossas necessidades fisiológicas, dormir. Esse processo essencialmente biológico não é negociável nem tampouco durável. Ninguém pode ser mais produtivo adiando uma ida ao banheiro ou comendo mal, certo? Bem… pelo menos em tese, não.

O labor é um trabalho que desaparece em seu próprio consumo e que nos consome, em certos casos, até o ponto do nosso próprio desaparecimento. Ter um emprego ruim, não por acaso nos coloca muito próximos do labor. Qualquer subjetividade é eliminada em nome da sobrevivência.

A segunda ideia de trabalho é o que se traduz por obra, ou mais comumente trabalho (grifo meu). Esse tipo de ação é o que produz coisas para durar, é o que colore o mundo com a nossa marca.

A principal diferença do trabalho para o labor é que podemos nos orgulhar do segundo. O trabalho, segundo Arendt, é o que sobrará depois que não estivermos mais aqui, sua função é o “pertencer-ao-mundo”. O trabalho não nos pertence, não é feito diretamente para o nosso uso, mas para a pluralidade. Precisamos dessa conexão com as outras pessoas para sabermos que estamos no caminho certo.

O trabalho para o mundo é sempre um trabalho para “algo maior”. Mesmo que não seja o emprego dos sonhos, mesmo que o façamos apenas pelo salário, há nele ao menos um pouquinho de pluralidade. O problema é quando esse “algo maior” é algo ruim. Hannah Arendt dedicou sua vida a compreender a banalidade do mal dentro do nazismo, um exemplo clássico de que trabalhar cegamente para “algo maior” sempre termina em merda.

A série Ruptura

A série Ruptura produzida pela Apple TV é um caso raro de entretenimento capaz de exemplificar um fenômeno social de alto poder destrutivo. Aviso: daqui em diante alguns spoilers.

A série acompanha a rotina de alguns funcionários de uma grande empresa chamada Lumon. Ninguém, nem seus funcionários, sabe o que essa empresa produz. Tudo é frio, super iluminado e obtuso. Uma das tarefas de trabalho se resume a identificar números “malignos” na tela de um computador antigo.

A chave para esse trabalho às escuras é um procedimento cirúrgico que divide a memória e a percepção dos funcionários da Lumon em duas partes. Na parte “interna” há o funcionário que vive dentro da Lumon. Ele não se lembra de nada do que há do lado de fora da empresa, não sabe como vive nem ao menos se dá conta dos detalhes de sua vida pessoal.

Já a versão “interna” desse funcionário, ativada por um chip implantado em seu cérebro, só conhece o universo do trabalho dentro da empresa, os valores éticos e morais só existem de acordo com as regras dentro dos cubículos da Lumon. Tudo o que ele sabe é que o que faz ali é sigiloso e muito importante: algo maior.

O mundo do trabalho segundo Ruptura é um mundo no qual a conexão entre vida pessoal e vida laboral foi quebrada. Ao tomar o elevador no final do expediente, o funcionário da Lumon não se lembrará de nada do que fez durante as 8 horas de jornada. Do mesmo modo, ao entrar na empresa toda a sua vida fora dela é literalmente desligada.

A precarização do trabalho não é só um jogo feito de salários ruins e quase nenhum direito trabalhista, é também um cenário no qual o que somos é anulado em prol da produtividade. Não cabe, dentro da era da produtividade, qualquer traço de personalidade, qualquer desejo que não seja o de produzir mais e mais. Tudo o que cruza essa regra deve ser eliminado.

Em Ruptura as relações éticas e de poder são baseadas nas regras criadas pelos fundadores da empresa (há uma réplica da casa de seu pai criador da Lumon como um santuário interativo) e isso é muito irônico levando em conta que essa é uma série produzida pela Apple. Os fundadores da Lumon são vistos como heróis bíblicos, suas ideias e imagens estão me todos os manuais e representações visuais da empresa. Num mundo onde só existe o trabalho, Deus é um empreendedor visionário.

Ao se submeter ao processo de ruptura o funcionário poderia atuar em qualquer tipo de coisa abjeta sem se dar conta disso — apenas a sua versão interna saberia o que realmente ocorre. E se a Lumon for um centro de tortura? Se maltratar animais (uma cena com cabritinhos dá sinal de algo do tipo)? Se produzir armas nucleares? O ponto é que boa parte dos bullshit jobs do mercado digital já é assim. Um operador de telemarketing, um freelancer ou um funcionário de uma grande empresa de entregas não sabe bem como a sua cadeia de trabalho funciona. Ele é apenas uma parte da gigantesca máquina que nunca revela o seu todo, nunca permite aos seus trabalhadores qualquer tipo de subjetividade. O seu trabalho não é feito para o mundo — não para o nosso mundo.

Numa cena grotesca um dos funcionários é interpelado por sua superior. A reunião conta com a participação dos membros do conselho geral, que nunca se apresentam de fato, apenas ouvem tudo através de um viva voz retrô. A única coisa que recebemos deles é o som da respiração.

A mesma coisa ocorre com os motoristas de aplicativos, que rodam pela cidade recebendo ordens na tela do celular sem nenhum contato objetivo com seus superiores. Os chefes estão em todo lugar e em lugar algum. Ou pior: os chefes querem que você assuma o posto de chefe de si mesmo.

Retirar a figura do patrão do jogo do trabalho é uma das características mais violentas do capitalismo tardio detalhado por David Graeber. A tecnologia digital permite comandar grandes grupos de trabalhadores precarizados sem que haja um responsável direto no comando. A mediação feita pela máquina (computador, celular ou app)coloca o trabalhador diante de uma abstração. Quando alguma coisa dá errado, basta trocar o indivíduo por outro.

O podcast Prato Feito, criado pelo site O joio e o trigo, tem um episódio chocante sobre a relação da empresa iFood com seus entregadores. Apesar de suas práticas desumanas, que envolvem entregadores famintos carregando comida nas costas, a iFood promove palestras na qual o seu diretor apresenta a empresa como um modelo inovador de empreendedorismo. Seus entregadores não são mão de obra barata, são pais-fundadores de um negócio pessoal. Eles não estão sendo explorados, estão participando de algo maior, importante e “disruptivo”.

Essa transformação do sentido do trabalho já havia sido prevista por Marx, só que a realidade nos entregou um prato ainda mais amargo. E aqui acontece algo inóspito: quando o que fazemos perde o sentido, o labor se mistura ao trabalho. Passamos a trabalhar para manter nossas funções vitais básicas e nada mais do que isso.

A Amazon criou uma série de cabines para que seus funcionários tenham um momento de “bem-estar” . Foto: Boing Boing.

A festa do waffle

Num outro momento os funcionários da Lumon são informados que há uma recompensa para cada meta batida. É a festa do waffle, que se resume a uma pausa para comer waffles. Tudo na Lumon gira em torno de falsas recompensas: pausas para dancinhas, um buffet de melão e até apertar da mão de um superior se torna um tipo de prêmio.

As cinco estrelas que damos aos motoristas de aplicativo e as mesas de pingue-pongue das empresas de tecnologia são uma versão da festa do waffle. Não são benefícios reais, são prêmios gamificados para trabalhadores orientados ao novo, ao moderno. E como o novo e o moderno não têm forma (são sempre algo por vir), qualquer coisa serve como recompensa.

Nesse novo mundo o trabalho precisa de uma aura de religião. É a repetição que irá formar o seu futuro, é não desistir que irá garantir sua vitória. Você precisa acreditar que está sendo parte de “algo maior”, algo que irá fazer sentido depois. E isso só faz sentido dentro de um grande processo de despersonificação. O indivíduo não pode jamais se ver como alguém com ideias próprias. Tudo nele precisa ser aniquilado em nome da produtividade.

É célebre a notícia de que os funcionários da Amazon são punidos por irem ao banheiro. A Amazon, assim como a Lumon, também possui sua “sala de despressurização”, um cubículo com um computador e paisagens bucólicas que serve como alívio para jornadas extenuantes sem direito ao toalete.

A repetição mecânica de funções sem sentido nos conecta com um mundo no qual tudo o que importa é o pagamento, sempre insuficiente, que nos garantirá mais uma ida ao mercado, mais um aluguel. Esse trabalho animalesco é também um trabalho sem memória, pois se consome no próprio ato. Não há uma obra final a ser contemplada, não há vestígios. Tudo se apaga no final do experiente para recomeçar do mesmo ponto no dia seguinte.

Byung-Chul Han exemplificou isso com maestria em A sociedade do cansaço. Segundo ele:

“Nessa sociedade coercitiva, cada um carrega consigo seu campo de trabalho. A especificidade desse campo de trabalho é que somos ao mesmo tempo prisioneiro e vigia, vítima e agressor. Assim, acabamos explorando a nós mesmos.”

Poder trabalhar de casa, por exemplo, é algo visto como positivo e inovador, quando na verdade poder trabalhar a qualquer hora é a base do trabalho sem fim e sem memória. Não nos lembramos mais do que fazemos porque fazemos isso sem parar, o tempo todo, em todo lugar. A cada fim de expediente o dia que acaba parece igual anterior. Estamos, como os funcionários da Lumon, vivendo uma ruptura estratégica feita de cansaço, sobrecarga de tarefas e da ilusão de que tudo isso é parte de um plano maior.

A diferença é que na nossa ruptura não há duas versões, mas apenas uma. Uma versão de nós mesmos que vive num mundo feito de puro trabalho e cansaço. Um cansaço permanentemente alimentado pela esperança de uma bela e doce festa do waffle.

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